Artigo por CONVIDADA

O abandono afetivo e a quebra dos laços familiares: Aspectos Jurídicos

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Essa matéria foi escrita por Dra. Luana Martins, nossa representante de São Paulo-Capital 

 

Em primeiro lugar há que se pensar que o instituto do abandono afetivo está fundamentado em premissas básicas, já definidas constitucionalmente, como a dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento sadio – em todos os aspectos – dos filhos que compõem uma unidade familiar.

E veja, há que se analisar cuidadosamente o que se chama abandono afetivo: é muito comum entender esta espécie de abandono em casos, na maioria das vezes, em que genitores simplesmente abandonam seus filhos depois do nascimento sem nem querer saber notícias daquele, simplesmente pagando (ou não) sua obrigação de pensão alimentícia

Porém, muito embora esta seja a espécie mais comum de abandono, existem formas mais sutis de falta de afeto e descumprimento do dever paternal de fornecer este mesmo afeto e toda sorte de subsídios para que uma criança cresça, no mundo, de forma saudável não apenas materialmente falando, mas que esta possa ser sujeito de todos os direitos socialmente existentes.

Pois bem. De acordo com o grande filósofo grego Platão, “Não deverão gerar filhos quem não quer dar-se ao trabalho de criá-los e educá-los.” Essa frase nos mostra exegeticamente o quão importante se faz um pai na vida de um filho.

A relevância na vida de um ser humano de ter alguém para lhe amparar, lhe ensinar os valores morais, a tradição da família, enfim, ser um exemplo a ser seguido.

Todos sabemos da importância da presença do pai na vida de um filho, entretanto, não se pode mensurar os danos causados pela ausência dessa figura paterna.

Os meandros da mente humana são difíceis de serem compreendidos, assim como os reflexos das atitudes exteriores que podem alterá-los, principalmente quando estas partem de alguém que naturalmente teria o dever moral e objetivo de cuidar, amparar, proteger, dar afeto e que, para muitos filhos, realiza exatamente o oposto: ausência e total desinteresse na vida do filho ou, ainda, o pior: ameaças, violência, agressões, ódios, ciúmes e toda sorte de sentimentos negativos e perniciosos que em muito afetam a formação do ser humano desde seus primeiros anos.

Por outro lado, é sabido que não há e nem haverá lei alguma que obrigue alguém a amar, pois um sentimento tão puro, nobre e benfazejo não pode ser imposto juridicamente a ninguém.

Ama-se ou não! A falta de amor de um pai para com seu filho, pode até ser socialmente reprovável, mas não enseja nada, pelo menos não juridicamente falando.

Entretanto, ambos os pais têm o dever OBJETIVO de manter os filhos, quando menores, em sua companhia e educá-los e, quando isso deixa de ocorrer e os genitores são omissos em relação a estes atos, o instituto do abandono afetivo se apresenta e tal comportamento deixa marcar profundas na personalidade do filho menor que cresce, se fato, sem a verdadeira noção do que é a figura paterna em seu conceito mais simples e puro.

É preciso, portanto, ser pai e mãe na amplitude legal da expressão: sustento, guarda e educação dos filhos.

O dever de sustento não carece de muitas explicações, tratando-se de um dever notadamente patrimonial. No entanto, tal dever se fundamenta no fato de que os pais não devem deixar seus filhos desemparados materialmente, sob pena de sofrer as penalidades legais.

Quanto ao dever de guarda, trata-se da manutenção dos filhos em companhia dos pais, a qual decorre naturalmente do poder familiar, sendo certo que, na hipótese de desunião dos genitores, caberá o direito de convívio ao genitor não-guardião, salvo em caso de guarda compartilhada, que é o sistema vigente atual.

Por fim, o dever de educação da prole incumbe aos pais como forma de se garantir ao filho uma perfeita conformação moral e intelectual. Os pais devem, assim, desempenhar as funções de educadores e de autoridades familiares para que a criança possa receber uma educação condigna e perceba a noção de autoridade por meio da imposição de limites já no seio familiar, sob pena de um desajustamento e uma inadequação social posterior, quando o grupo familiar por si só, já não se fizer presente, ou não se puder fazer ativo na proteção da pessoa do filho.

Conforme artigo publicado, “(… ) O abandono afetivo se configura, dessa forma, pela omissão dos pais, ou de um deles, pelo menos relativamente ao dever de educação, entendido este na sua opção mais ampla, permeada pelo afeto, carinho, atenção, desvelo. A ausência dessas virtudes é fundamentação jurídica primordial para que um pedido de abandono afetivo, seja levado ao Poder Judiciário, na medida em que a Constituição Federal exige um tratamento primordial à criança e ao adolescente e atribui o correlato dever dos pais, à família, à comunidade e à sociedade.” (RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. O Poder Familiar e a guarda compartilhada sob o enfoque dos novos paradigmas do direito de família. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2005, p. 94).

Dessa forma, ainda que a presença dos pais seja uma constância na vida dos filhos, deve-se atentar para o fato de que não basta a presença física, sendo mister que a presença se consubstancie no bom desempenho das funções parentais. Pode se dar, assim, que o mau desempenho destas funções acarrete danos à formação sócio-psiquico-cultural da criança, como é de fato, o fundamento para muitas ações indenizatórias fundadas no abandono afetivo.

No que tange ao dever de indenizar, deve-se atentar para o instituto da responsabilidade civil, sendo certo que seus elementos devem estar pautados na funcionalização das entidades familiares, segundo a jurista GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA, em seu artigo “Pressupostos, Elementos e Limites do Dever de Indenizar por Abandono Afetivo”.

Conforme se verifica, o dano causado pelo abandono afetivo é, antes de tudo, um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada.

Segundo GISELDA, “(…) A ausência injustificada do pai origina – em situações corriqueiras – evidente dor psíquica e consequente prejuízo à formação da criança, decorrente da falta não só do afeto, mas do cuidado e da proteção (função psicopedagógica) que a presença paterna representa na vida do filho, mormente quando entre eles já se estabeleceu um vínculo de afetividade”.

Dessa forma, a figura paterna que deveria oferecer proteção, muitas vezes pode se apresentar como alguém não apenas ausente, como também agressivo, por vezes aterrorizante, contrariando justamente a necessidade de formação da personalidade junto à instituição familiar.

Outro ponto importante a ser abordado é a idade com a qual possa se ajuizar ações de abandono afetivo, quando apresentados os requisitos acima – já que o sofrimento patente oriundo de violência doméstica, também é uma forma de abandono tendo em vista o sofrimento decorrente de um filho sofrendo agressões daquele que deveria protegê-lo.

Existem análises oriundas de estudos psicológicos sobre o tema, segundo os quais se tem entendido que nada há que possa garantir que a personalidade – enquanto atributo pessoal da dignidade humana seja um processo de contínua evolução e que, por isso, não seja um dado acabado ou completo com assunção da plena capacidade – não se modifica mais, depois que esta etapa etária da vida de uma pessoa tenha sido alcançado.

Avulta, assim, a importância da perícia técnica a fim de estabelecer e ratificar não só a existência do dano, como a sua causa. Necessário, portanto, a fixação, em caráter retrospectivo, da época em que os sintomas dos danos sofridos começaram a se manifestar. Seja este abandono configurado pela ausência física do genitor, seja este abandono representado pela modalidade presencial, com o mau exercício dos deveres decorrentes da paternidade, ainda que o convívio seja diuturno.

Com esse enfoque é altamente ilustrativo trazer à colação o magistério de Maria Berenice Dias: “A lei obriga e responsabiliza os pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicofísica dos filhos, nem como principio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura dano moral. E quem causa dano é obrigado a indenizar. A indenização deve ser em valor suficiente para cobrir as despesas necessárias para que o filho possa amenizar as seqüelas psicológicas.” (DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias. 9ª edição São Paulo: RT 2013, p 471).

De igual modo, é oportuno gizar as lições de PAULO LOBO, em sua integralidade:

“Entendemos que o princípio da paternidade responsável estabelecido no art. 226 da Constituição Federal não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória.

O art. 227 da Constituição Federal, confere à criança e ao adolescente os direitos “com absoluta propriedade”, oponíveis à família, inclusive ao pai separado, à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, que são conteúdo moral, integrantes da personalidade, cuja rejeição provoca dano moral.” (LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4ª edição São Paulo: Saraiva, 2011, p. 311-312).

E, diante de tudo isso, há que se concluir a possibilidade de ações indenizatórias resultantes de abandono afetivo, porém deve-se também levar em conta que tratam-se de ações bastante sensíveis e ainda muito controversas em nosso Poder Judiciário que dependem muito de prova técnica para serem robustecidas, recomendando-se com veemência que o titular do direito seja submetido, de fato, a exames e tratamento psíquico não só para constituir provas em eventual ação judicial, como também pelo bem-estar da saúde mental daquele que foi vítima de todas as formas de abandono.

 

Luana Martins

25/01/2021

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