Artigo por CONVIDADA Violência Doméstica

A Violência Doméstica e o Afastamento da Vítima do Lar Conjugal

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Antes de mais nada, o motivo pelo qual resolvi escrever este artigo é devido às inúmeras dúvidas apresentadas por muitas mulheres das mais diversas classes sociais que, inseguras ante a uma situação de violência doméstica, obviamente abarcada por anos de relacionamento abusivo, acreditam que, sair deste ciclo de violência, inclusive levando os filhos menores do casal, poderia configurar algum tipo de abandono passível de perda de direitos à posterior partilha ou, até mesmo, o risco de perder a guarda destes filhos.

Muito me impressiona – não por culpa delas, é verdade – o tamanho da desinformação gerada pelo medo e pela pressão social a que estas mulheres são submetidas. Muitas delas, inclusive, simplesmente não encerram o ciclo de violência não só por fatores psicológicos (os quais não cabe a mim discutir por não ser profissional da área), mas também por acreditarem que perderão o direito à partilha do patrimônio amealhado pelo casal durante todos estes anos. E, pior, temem também perder a guarda dos filhos para o companheiro/marido violento no caso de abandono do lar com o objetivo de fugir do ciclo de violência – medo este inclusive justificável por ameaças do próprio algoz, o qual muitas vezes deixa claro que, caso haja qualquer tentativa de separação ou de saída do lar, esta perderia o direito à divisão do patrimônio e da guarda dos filhos. Ou seja, muitas das mulheres com quem me deparo em minha rotina não encerram este ciclo por ameaças do que poderia acontecer a si e a seus filhos quando o assunto é violência doméstica.

O que eu gostaria de falar, no entanto, em linguagem voltada àquelas que são leigas em termos de legislação e, ao mesmo tempo vítimas dos abusos aqui citados, é que não há absolutamente nenhuma previsão legal que lhes tire o direito de guarda dos filhos ou até mesmo da divisão do patrimônio comum do casal, a depender do regime de casamento, é verdade, por decidir separar-se. E, aqui, falo especificamente dos casos de violência doméstica, porém a separação e o divórcio obviamente não ocorrem somente por este motivo e, ainda assim, não é fator preponderante para que se perca quaisquer direitos decorrentes da guarda, alimentos e partilha de bens.

Para se ter uma idéia da gravidade do problema que estamos enfrentando, segundo dados estatísticos fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública dos respectivos estados, o número de mulheres assassinadas por crime de gênero em 2019 (feminicídio), aumentou 7,3% em relação a 2018, o que totaliza em 1314 casos de feminicídio no Brasil no ano passado.

Esse resultado contrasta com uma queda do número total de homicídios no país, estatística destacada pelo ministro Sérgio Moro, da pasta de Justiça e Segurança Pública como uma de suas vitórias no comando.

De acordo com a Lei 13.104/2015, a qual instituiu a tipificação de feminicídio, este somente ocorre quando há histórico de violência doméstica familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Ou seja, para chegarmos à necessidade de instituir uma lei específica que trata casos de violência contra a mulher, estando a vítima na condição de mulher (gênero), há que se fazer uma profunda reflexão acerca do ciclo de violência que se chegou para que o Estado possa proteger a vítima especificamente neste tocante.

A Lei 13.894/19 trouxe alterações na legislação acima citada, cujo intuito, inclusive, é o de facilitar o acesso da mulher, vítima de violência doméstica, ao juízo competente para promover as ações de divórcio e/ou dissolução de união estável conforme o caso, sobretudo para encaminhar as vítimas, principalmente aquelas de maior vulnerabilidade econômica, às assistências jurídicas ou defensorias públicas, conforme o caso.

Muito embora a referida lei não preveja a partilha de bens nem o ajuizamento de ação de alimentos e regulamentação de guarda/visitas, cuja competência reservar-se aos juizados cíveis e/ou de família e sucessões, entende-se que já é um grande avanço para formular o entendimento de que, ao contrário da permanência no ciclo de violência, a mulher tem sim a opção de fazer valer o seu direito afastando-se dessa situação sem, no entanto, perder os direitos adquiridos em razão do casamento / união estável.

Assim, muito embora a partilha de bens especificamente não esteja prevista nesta lei, é perfeitamente possível requere-la tendo em vista a previsão legal definida em nossa legislação civil, sendo que o afastamento da vítima do lar conjugal não leva a uma perda de direitos, como muitos abusadores tentam fazer crer.

A questão acerca da guarda dos filhos também leva a esta mesma reflexão, na medida em que uma mãe, ao fazer cessar o ciclo de violência afastando-se do lar e levando consigo os filhos menores, de forma nenhuma faz com que esta perca a guarda – que via de regra é compartilhada, salvo em casos muito específicos que tornem tal prática impossível, como é este caso a nosso ver.

Existem decisões judiciais, inclusive, a depender do nível de violência perpetrada contra a genitora, que a própria visitação do pai aos filhos menores é suspensa até que a realidade violenta deste e a prova de regeneração e reinserção na sociedade seja apresentada para, então, possibilitar o exercício da visitação ou até mesmo da guarda compartilhada.

Logo, é um descalabro pensar que o afastamento da vítima do lar conjugal, com o intuito de preservar a própria integridade física e, porque não dizer, a própria vida desta e, muitas vezes, a vida dos filhos menores, gerará a perda de quaisquer direitos previstos no instituto do direito de família, mormente a guarda, pensão e partilha de bens adquiridos durante a conjugalidade.

Penso que este artigo pode parecer um tanto quanto simplório para os operadores do direito, de um modo geral, porém militando no direito de família há tantos anos, tenho me deparado com tais dúvidas e inseguranças em casos concretos, fazendo-se extremamente necessário este entendimento porquanto, por mais que existam edições de novas normas e leis cujo objetivo é justamente baixar este índice de violência e proteger as mulheres que, socialmente enquadram-se na classificação de “minorias” e, por isso, legalmente mais frágeis, também faz falta uma educação mais formativa e orientativa, no sentido de apresentar tais possiblidades a estas mesmas vítimas a fim de que elas possam tomar as atitudes necessárias de interromper o ciclo de violência que gera traumas, não só entre as partes envolvidas, como também à família e aos filhos em comum.

 

Artigo por Dra. Luana Martins , atuante na Comarca de São Paulo/Capital e Litoral Sul

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